Sistema Tributário

Os desencontros da Economia

Quadrilha:

Carlos Drummond de Andrade

João amava Tereza

Que amava Raimundo

Que amava Maria

Que amava Joaquim

Que amava Lili

Que não amava ninguém (Silva, 2009).

A Economia funciona exatamente como a poesia de Drummond. Para que ela esteja em equilíbrio, é preciso que o poema não termine por “que não amava ninguém”. Seria necessário que o último verso dissesse: “que amava João”, fechando o círculo.

Isso é, no entanto, de extrema raridade, se é que, de fato, já aconteceu. Em 1995, apresentou-se um trabalho de conclusão de curso na FAAP (Fundação Armando Álvares Penteado), que estudava a possibilidade de, numa fazenda, desfrutando-se de parte do gado, de o rebanho atingir uma quantidade imutável. Em outras palavras, se não se comprasse nenhuma cabeça de fora, deveria haver uma quantidade de animais abatidos ao ano que igualasse com o número líquido de nascimentos, tal que o total não se alterasse. Tomou-se como exemplo uma propriedade real e assumiram-se perdas médias historicamente comprovadas, como de distribuição normal. Todas as variáveis (índice fertilidade, de morte e descarte, por exemplo) eram, em resumo, representadas pela tendência secular via regressão linear. O método escolhido para simular a evolução do rebanho foi o das Cadeias de Marcov (Grigoletti, 2015). As percentagens estimadas para ganhos e perdas foram colocadas na matriz de transição e usou-se o rebanho inventariado em 31 de dezembro de 1994 para compor a matriz de estado. As matrizes de estado estimadas subsequentes davam a entender que o rebanho tendia a um estado estacionário, porém, ao se resolver o sistema de equações, constatou-se que as quantidades de equilíbrio eram negativa, portanto, mesmo sendo calculável, o equilíbrio natural não existiria, pelo menos, não à luz daquele modelo, posto que cabeças de gado não podem ter número menor que zero. Na verdade, o plantel tendia à extinção, a não ser que administrado, seja pela reposição de reprodutores, seja pela alteração do plano de desfrute. O maior problema do modelo empregado era não considerar as variações das condições de mercado, que podem afetar abruptamente a matriz de transição. Resta administrar para evitar o caos.

Hoje, teorizar sobre o caos é recorrente. Ocorre que não é agradável viver no caos e não se pode simplesmente assumir que ele seja inexorável. Daí dizer-se que administrar é o grande papel do ser humano tecnológico. Nós, seres humanos, que já não vivemos ao sabor das intempéries, precisamos destinar parcelas crescentes de tempo para administrar o que cerca a sociedade. Evitar o caos sob o ponto de vista macro é o papel do estado e é esse serviço que se compra dele e pelo que se paga em impostos.

Governantes limitam-se, como em todas as democracias, a gerir os recursos públicos a fim de resolver o impostergável e administrar, sem solucionar, os conflitos. Será que a sociedade é inepta a ponto de não conseguir montar um sistema em que todos se sintam COMO ESTANDO do mesmo lado do balcão?

Marx achava que sem sangue não se conseguiria. Pensava que a estrutura de propriedade Não só não o permitia, como incentivava e se alimentava do antagonismo social (Hayeck 2009). No século XIX, muitos teóricos tentaram resolver dialeticamente o problema. Foram chamados de utópicos e algumas escolas, como a austríaca (Von Mises, 2017), conformaram-se em pensar que, com tantos atritos, o caminho não poderia ser apontado pela filosofia humana e as arestas aparar-se-iam pela simples evolução. Se bem que a dose de verdade seja incontestavelmente grande, sob o ponto de vista utilitário (Mills, 2000), não justifica quedarmos sentados, enquanto as gerações contemporâneas não podem almejar o progresso pessoal à luz do aprimoramento institucional.

Quando um avião voa está forçosamente em equilíbrio. É que ele funciona como uma gangorra, cujo apoio são as asas. Seu projeto precisa ser bom o bastante para que ele continue voando apesar das variações de pressão ao seu redor. Se o seu ponto de equilíbrio só se der quando não houver vento, o céu estiver impecavelmente azul _ um céu de brigadeiro, como diriam os aeronautas _ o projeto seria considerado crítico, portanto, inviável. Sistemas de controle como ailerons, flaps e profundores cuidam para que ele se mantenha estável e voe na direção desejada. Ele é, portanto, administrado o tempo todo e por sistemas cada dia mais sofisticados, conhecidos por “fly by wire”.

Nós mesmos, quando estamos em pé, precisamos de mecanismos que nos impeçam constantemente de cair, visto que nossos pés têm uma área ínfima, considerando-se nossa altura. Caso se tente colocar em pé um lápis, cuja proporção entre altura e área da base é muito semelhante à do corpo humano, qualquer golpe de ar o fará cair. Nós, pelo contrário, esticamos uma perna, compensamos o desequilíbrio com um movimento de braço e tudo permanece estável. É assim que se administra o equilíbrio corporal.

Na sociedade também é assim. As pessoas matam-se, furtam umas as outras, convivem com a miséria, a doença e todas as mazelas possíveis. Um teórico mal intencionado ou mal patrocinado dirá que isso é a prova de que a humanidade está sempre em equilíbrio, posto que apesar de todos os males, não nos aniquilamos ainda. Na verdade, é o oposto, pois é justamente a administração pública que afasta o caos. É o aprimoramento das instituições que estabiliza o voo da humanidade, assim como “fly by wire” faz com os aviões.

No dia 5 de abril de 1998, no “Fantástico”da Rede Globo de Televisão, deu-se a notícia de que a obesidade mata mais pessoas do que a fome. Dizia ainda que morriam quinhentas milhões de pessoas por excesso de alimentação ao ano. Notícia assaz impressionante, que não resiste à mais elementar aritmética. Se estimavam-se aproximadamente seis milhões de pessoas vivas no mundo de então, morrendo quinhentas milhões por ano, poder-se-ia inferir que a longevidade média seria de doze anos, apenas por conta da obesidade, sem contar com todas as demais causas de óbito. Como se semelhante absurdo não bastasse, os pesquisadores esqueceram-se de que para engordar é preciso estar vivo e todos os que morreram de fome nos primeiros anos de vida não tiveram essa chance. É para ficar temeroso de que um político pudesse estar vendo aquele programa de televisão, pois poderia chegar à conclusão de que, incentivando a má nutrição, estaria fazendo um bem ao povo, evitando que ele morra por obesidade. Pensando assim, deveríamos idolatrar os estadistas da Somália, da Etiópia e do nosso Nordeste, bem como a todos os que defendem o fim do Estado.

Equilíbrio social, implica em dar a cada indivíduo a oportunidade de levar a vida equilibradamente, sem sustos e sem medo, porém, com o desafio de melhorar ainda mais.

Na sociedade das formigas Não parece haver conflitos a se administrarem. Todos sabem o seu papel e trabalham para manter seu padrão de vida. Mesmo assim, não é uma comunidade perfeita porque é biologicamente definida. Durante a encubação, dá-se a cada grupo uma dieta diferente, a fim de determinar a função que cada indivíduo terá pelo resto de sua vida. Desenvolver-se-á como soldado, reprodutor, rainha, operária e outras funções de que porventura o formigueiro precise. Feita a metamorfose, não há progresso pelo qual ansiar. Pode-se dizer que não há a mínima mobilidade social.

Nós, seres humanos, não aceitamos isso. Queremos levar uma vida diferente e melhor que a de nossos pais e desejamos que nossos filhos tenham oportunidades melhores que as que tivemos. Há, dentre nós, os que não se conformam com a posição social que se lhe destina, querendo subir a qualquer custo. Em outras palavras, nunca se ouviu falar de uma formiga ambiciosa. Também, além do que a evolução permite, não há alterações significativas na sociedades das formigas geração a geração. Para os humanos, ao contrário, existe mesmo uma compressão da história.

O fenômeno acima foi descrito por Marx (Marx 1996). Significa que, graças ao avanço tecnológico, as coisas vão acontecendo mais e mais rapidamente. A população mundial dobra em períodos cada vez menores, as invenções multiplicam-se de tal forma que se torna difícil a um cidadão treinar-se no uso de tamanha parafernália, o conhecimento aprofunda-se a ponto de o que aprendemos ontem poder tornar-se obsoleto hoje, levando-nos de volta ao estudo, como em uma bola de neve.

O que há então a aprender com insetos tão laboriosos? Sem dúvida é visar o bem comum. É entender que, se todos fizerem parte de um mesmo pacto, a chance de desenvolvimento cresce significativamente.

Pagar impostos parece ser o primeiro passo. Não há notícia de formigas sonegadoras. Todas parecem dar de bom grado seu quinhão pelo bem-estar do formigueiro. Por que não nós?

Para as sociedades deterministas como a dos insetos, não há realmente impostos, pelo simples motivo que não há necessidade de impor coisa alguma. É de sua natureza contribuir, caso contrário todas perecem. Já para os homens, que se julgam conscientes, a sonegação a eles parece individualmente vantajosa. O principal culpado por isso é o próprio sistema tributário, que faz com que sonegar tributos não redunde em prejuízo individual e imediato.

No Brasil um exemplo é o dos impostos do tipo IVA (imposto sobre valor adicionado). Entendem-se como valor adicionado trabalho despendido na transformação e a mais-valia, que, mal comparando, corresponde à contribuição de cada unidade vendida para cobrir os custos de capital, alguns custos de “overhead” e a remuneração do empreendedor (Faria, 1983). Trata-se de um mecanismo de débito e crédito. Quando o minerador vende o minério de ferro à siderúrgica, obtém um débito de ICMS porque recebeu um valor que deverá destinar ao Estado. A siderúrgica, por sua vez, tendo pago pela mercadoria, obtém um crédito equivalente ao débito do minerador. Depois de processar o ferro, venderá à fundição, contraindo um débito de ICM, enquanto seu cliente conseguiu um crédito de mesmo valor. A fundição molda peças encomendadas pela indústria automobilística, gerando um débito para si e um crédito para seu freguês. A montadora então vende o automóvel às agências, com o mesmo mecanismo de débito e crédito que na cadeia de produção anterior. As agências, porém, são as últimas a conquistar o crédito de ICM, ficando o consumidor final fora do mecanismo, pois, como dizem os tributaristas, não adicionam valor ao bem.

Na verdade, é justamente aí que encontramos a semelhança de nosso sistema tributário com o poema de Drummond. Quando deixamos o trabalho fora do processo, estamos impedindo que o anel se feche e que todos se sintam como do mesmo lado do balcão. O mesmo acontece com o IPI. No próximo capítulo discutir-se-á o papel do trabalho na cadeia produtiva em maiores detalhes.

Referências

FARIA, Luiz Augusto Estrella. Sobre o conceito do valor agregado: uma interpretação. Ensaios FEE, v. 3, n. 2, p. 109-118, São Paulo 1983, disponível em javascript:void, consultado em 21 ag 2020.

GRIGOLETTI, Pablo Souza. Cadeias de Markov. Recuperado em, v. 19, n. 10, p. 2014, 2011. Serpro – Serviço federal de Processamento de dados, São Paulo 2015, disponível em https://www.researchgate.net/profile/Pablo_Grigoletti/publication/228747669_Cadeias_de_Markov/links/0deec5344683f96036000000/Cadeias-de-Markov.pdf consultado em 21 ago 2020.

HAYECK, Cynara Marques. Refletindo sobre a violência. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais, v. 1, n. 1, 2009, disponível em https://periodicos.furg.br/rbhcs/article/viewFile/10353/6700, consultado em 21 ago 2020.

Marx, Karl. “O Capital, Crítica à Economia Política, Coleção Os Pensadores, Editora Abril, São Paulo 1996.

MILL, John Stuart. A liberdade; Utilitarismo. Martins Fontes, São Paulo 2000.

VON MISES, Ludwig. A ação humana. LVM Editora, 2017.

SILVA, Andréia Anhezini da. Quadrilha: uma análise da relação poesia e música. In: CELLI –COLÓQUIO DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS E LITERÁRIOS. 3, 2007, Maringá. Anais… Maringá, 2009, p. 138-149.

VON MISES, Ludwig. A ação humana. LVM Editora, 2017.