Sistema Tributário

Por que somos governados?

Não se tem a intenção de escrever um livro a respeito de finanças públicas. Muita gente já o fez e não conseguiu influenciar significativa e positivamente os governantes em lugar algum do mundo. Nenhum dos autores conseguiu ensinar os administradores públicos a gastar somente o que seus estados podem arrecadar pelo simples motivo de que o dinheiro não lhes pertence. Em outras palavras, não dá para crer que haja estadistas que, como pessoas, não saibam de verdade tão elementar. Ocorre que o que se faz com o dinheiro público é justamente o oposto de como se tratam os recursos próprios. Isso é assim aqui, nos Estados Unidos, no Japão ou em qualquer lugar do Mundo.

Quando se elegem governantes, passa-se uma procuração para que eles façam esmolas com o chapéu do povo. Não há como fugir disso por mais que se contrariem Hayek e Mises (Rothbard, 2014). Alguém precisa assinar os cheques e pagar as contas. O problema é que se dá também uma procuração para que se assumam novos compromissos em nome da sociedade.

Quando pessoas físicas viajam por um período considerável, constituem-se procuradores para pagar seus impostos, seguros, aluguéis, prestações e demais contas. Não se lhes dá, porém, direito de fazer novas dívidas em seu nome. Com o Governo, no entanto, não é assim. Quando os Estados Unidos consumiam verbas capazes de salvar da fome todas as crianças que estavam em perigo de morte na América Latina, para fabricar foguetes com ogivas atômicas suficientemente poderosas para acabar com a humanidade (Estenssoro, 2003), a população era sequer consultada, muito embora alegue-se que o seu congresso teria aprovado a verba. Há casos em que o povo é conclamado, quando não induzido, a aplaudir aumentos indizíveis de gastos, financiando guerras como aconteceu com as duas Guerras do Golfo, em especial, com a segunda, quando se alegava a necessidade inadiável de eliminarem-se armas químicas que nunca existiram e para isso consumiram-se US$ 5 trilhões e levando a dívida pública para 106% do PIB (de Moraes, 2013).

Ainda com relação aos Estados Unidos, graças à indústria do medo, trata-se o dispêndio com a indústria de armamento como de gasto secreto e que, para os congressistas, é descrito somente como verba de defesa. mesmo que não se trate de algo escondido, ainda assim a população será manipulada para crer que está em eterno perigo.

Se é verdade que o impacto de uma maçã foi capaz de levar Isaac Newton a sistematizar a lei da gravidade, é verdade que, enquanto este autor morava nos Estados Unidos, foi o peso de um jumbo coreano derrubado em solo russo[1] que despertou para o fato de que mesmo uma pessoa que se considera de consciência acima da média, está tão sujeita à propaganda oficial quanto o menos letrado dos fazendeiros do meio-oeste. Sem o despertar provocado por aquele pretenso acidente, por contaminação, seria possível começar a temer os russos. seria até provável passar a pagar impostos alegremente, pensando que estaria contribuindo com Tio Sam para a proteção de cada ser vivente em território americano.

O medo permeou o século XX a partir da I Guerra Mundial. Eric Hobsbawm[2] tratou disso em “A Era dos Extremos” de 1991, porém, talvez fosse ainda mais próprio ter escrito uma obra chamada “A Era do Medo” porque tem sido ele, o medo, o grande motor para que o indivíduo aceite ser governado e pague impostos. Foi o medo do comunismo que fez nascer o fascismo na Itália (RODEGHERO, 2007) e o nazismo na Alemanha (Guterman, 2013). A II Guerra Mundial mostrou o caminho das pedras ao governo americano e veio a Guerra Fria a justificar dispêndios inauditos em armas para não serem usadas, no que se chamou de “poder de persuasão” (Faris, 2014). A queda do muro de Berlim em 1989, bem como o subsequente desmantelamento da União Soviética não extinguiu a proteção contra um inimigo idealizado como sinônimo de bem comum. O Estado campeão continuou a viver da indústria do medo (Caniato, , 2007) e, em nome dele, cobrar impostos. Imediatamente, a ameaça deixou o comunismo para trás e passou a ser o mundo muçulmano (Haas, 2017). Vieram a primeira Guerra do Golfo em 1991, o primeiro atentado às Torres Gêmeas em 1993, a morte de Yitzhak Rabin em 1995, o segundo atentado às Torres Gêmeas em 2001, a perseguição de Bin Laden no Afeganistão em 2002, a II Guerra do Golfo em 2013, a morte de Bin Laden em 2011 e os grampos denunciados por Snowden em 2013. Mais recentemente, o atentado ordenado por Trump que matou o general iraniano, Soleimani, teve salvar um número incerto de pessoas num futuro igualmente indistinto.

Ocorre que os muçulmanos como ameaça não têm a abrangência planetária capaz de estender a indústria do medo aos países que pudessem estar assumindo maturidade suficiente a assumir seu lugar no mundo, construindo suas próprias alianças e sua própria zona de influência, como aconteceu com os integrantes do BRICS em geral e o Brasil em particular entre os anos 1990 e 2010. A banalização da violência interna com arrastões nas praias, explosões nos caixas eletrônicos, verdadeiras batalhas campais nas vielas das favelas deixaram de instilar medo coletivo na população. Pessoas podem se abrigar em bunkers tão sólidos e bem armados quanto à restrição orçamentária individual permitir. Isso, porém, não é a ameaça abstrata, impalpável e conspiratória que faz com que as pessoas aceitem ser governadas. É preciso que ela seja generalizada, que abranja gerações. Eis que ressurgiu o socialismo para instilar esse medo visceral na população, induzindo a chamar de volta os governantes salvadores do passado, reconstruindo a rede de proteção que os mantém no poder. Não é, no entanto, um socialismo como sistema econômico, pois esse já ficou no passado. Trata-se de uma definição nova, é o socialismo cultural que se anuncia como podendo destruir os valores mais básicos de nossa sociedade (Catarino 2016).

Muitos podem dizer que brasileiros não pagam impostos por definição, tomando como exemplo o próprio presidente Jair Bolsonaro que, em 1998, declarou publicamente ser sonegador a qualquer custo[3]. Essa repulsa não é verdadeira, pelo menos, não generalizada. Houve momentos em nossa História em que se doou “Ouro pelo Bem do Brasil (Netto, 2016)”. Isso ocorreu a partir de 13 de maio de 1964 por ocasião do apoio incondicional ao golpe. Alegava-se que o ouro remetido à Casa da moeda poderia pagar nossa dívida externa e aliviar as finanças do Estado. Mesmo pessoas proeminentes creram em semelhante balela. Havia quem tirasse o relógio do pulso e outras pessoas que doassem joias de família, até alianças de casamento foram entregues em troca de anéis de latão com os dizeres “Doei ouro pelo bem do Brasil”. Não se sabe onde foi parar o metal precioso. Sabe-se, no entanto, que não serviu para pagar coisa alguma de público. São episódios como esse que tornam temerária, quando não ingênua, a pressuposição de que o Estado possa ser sustentado via contribuições espontâneas como querem os anarco-capitalistas (Dal Pai, 2018). No exemplo acima, os recursos arrecadados, cujo montante jamais foi divulgado, foram administrados por uma ditadura, portanto, sujeitos às mesmas mazelas que os acometeriam se impostos fossem.

As ditaduras são corruptas por definição. Ao se passar por cima da lei para tomar o poder, por melhores que sejam as intensões, está-se agindo à margem das instituições, portanto, corrompendo-se. Alegações como “O povo não sabe votar”, ou “Democracia é artigo de luxo” podem sair da boca das pessoas mais puras ou de boas intenções, mas continuam sendo ilógicas. Nas ditaduras o jogo do poder dá-se por inteiro por baixo do pano. Deixa-se de dar uma procuração e passa-se a assinar um documento em branco sob a mira de uma arma.

Se na democracia está-se assinando uma procuração mais que plenipotenciária, ela tem prazo determinado e há leis que mal ou bem têm o fim de nos proteger (Moisés, 2008). O preço disso é que passamos a viver em um regime em que as coisas só se resolvem quando não há como postergar a solução mais um minuto sequer.

Mesmo que o senso comum nos países do terceiro mundo diga o contrário, no primeiro mundo as coisas não são diferentes. O “mal da vaca louca, na Inglaterra’, é um excelente exemplo disso (Duayer, 1999). Desde 1975, os membros do Partido Verde vinham denunciando o fato de usarem-se miúdos e fezes de carneiros e frangos na ração bovina. Alegavam que a porcentagem utilizada era segura, afirmando que, pelo fato de os animais serem bigástricos, qualquer aumento temerário de proteína animal na ração provocaria botulismo. Os verdes, no entanto, alertavam para o fato de que a quantidade de prion, enzima existente nos resíduos, é acumulativa, passando das mães para os filhos pelo leite. Foi preciso que morressem pessoas para que, em 1991, o governo inglês tomasse medidas. Quando o fizeram, como é de sua cultura, fizeram-no de forma radical, mandando exterminar milhões de cabeças de seu rebanho. Positivo foi o fato de o partido conservador ter caído por tratar-se de uma democracia.

Mas, se as ditaduras roubam-nos até os direitos mais elementares, se as democracias continuam impondo autoridade pelo medo, não eliminam o desvio de verbas e não antecipa a solução de problemas, por que se aceita pacificamente o fato de sermos todos governados? Essa dúvida vem norteando as pesquisas de filósofos desde a idade antiga, partindo de Aristóteles, Passando por Thomas Hobbs, os iluministas franceses, pelos economistas ingleses, filósofos alemães entre centenas de pensadores. D. Pedro II foi um deles, quando cedeu uma gleba para os anarquistas italianos, no fim do século XIX para que eles pudessem testar suas ideias[4]. Se essa questão aflige os monarcas, o que não fará com o menor dos cidadãos?

Se vivêssemos na Grécia antiga, Aristóteles diria que somos governados porque há uma elite capaz de apontar os melhores destinos para a sociedade. No século XVII, presenciaríamos o embate entre Hobbes (1588 – 1679) e Descartes (1596 – 1650), O primeiro afirmando que o estado natural da humanidade é a guerra e que ela só poderia ser refreada por uma autoridade incontestável a que ele chamou de Leviatã. O segundo buscava o racionalismo e o conhecimento de verdades incontestes que seriam capazes de regular a Humanidade pela ciência. No século XVIII, no entanto, ouviríamos os filósofos dizerem que o Estado visa o bem comum, enquanto Adam Smith (1723 – 1790) o renegava apontando-o como uma fonte desnecessária de dispêndios traduzidos em impostos. No século seguinte Marx (1818 – 1883) disse que, depois da ditadura do proletariado, viria a anarquia, posto que, eliminadas as diferenças de classes e de poder, não haveria motivo para haver governo. Este tema tem sido alvo de incontáveis livros, com inúmeras novas idéias capazes mesmo de provocar guerras.

A Antropologia indica sermos governados pelo simples motivos de que somos animais (Corrêa, 2010). Plantas, por mais que vivam em conjunto, não vivem em comunidade explícita. Não há entre elas um comportamento manifestamente solidário, se bem que pode ser simbiótico. Já entre os animais _ especialmente os gregários como nós _ o comportamento é organizado e solidário. Admiramo-nos ao ver a organização dos formigueiros, vespeiros, colmeias e outras comunidades biologicamente organizadas, com cada um cumprindo o seu papel, sem hierarquia, sem disputa de poder. Mais admiração ainda causam as alcateias com estratégias sagazes de caça e a aceitação da concentração do poder no casal alfa. Fica-se embasbacado ao estudar a Natureza e, como humanos, nos esquecemo-nos de olhar para nós mesmos e ver o quão próximos deles somos. Deixamos de nos admirar quando, do alto de um prédio, vemos o trânsito lá em baixo. Que perfeição! Tamanha miscelânea de veículos e pessoas movendo-se nas mais diversas direções sem se chocar. Se a capacidade de abstração for suficiente para extrapolar o que a vista alcança, haverá a antevisão das usinas hidroelétricas movendo à distância fábricas metrôs, computadores, enquanto uma infinidade de atividades desenvolvem-se simultaneamente.

Há que haver uma estrutura que organize tudo isso. Resta fazer com que ela funcione bem. Cabe aos homens ser inteligentes o bastante para criar meios para melhorar os processos que interessam a todos, portanto, não dizem respeito a ninguém em particular. Quando uma empresa vai mal, seus dirigentes, sejam eles proprietários ou não, despendem os maiores esforços para que os problemas se resolvam, porque sabem muito bem tratar-se de sua fonte de sustento. Quando o problema é público, parece não dizer respeito a ninguém. Quando, numa estrada mal conservada, um acidente mata todos os ocupantes de um ônibus, não há imputação de crime aos governantes, como se a omissão não fosse um delito. Entende-se a fatalidade como um refúgio para a incompetência. Ninguém parece ver que a comunidade, se não for o próprio sustento do Estado, é a base dele. Hora é o estado negando-se a prestar um serviço ao cidadão, hora é o cidadão transferindo suas obrigações para o governo. No dia 31 de outubro de 1998, um Sábado frio e chuvoso em Campos do Jordão, estância turística da Serra da Mantiqueira, o estado de São Paulo. Lá estava a equipe de que este autor fazia parte para participar da última etapa do campeonato brasileiro de enduro equestre. Buscando, ainda de madrugada, lugar para o desjejum, posto que o serviço do hotel ainda não tinha começado, demos com uma padaria que estava sendo aberta naquele momento. Perante a negativa quanto a servir um café com sanduíches, restava perguntar onde é que se conseguiria comer antes da 6h00. Tão ríspido quanto um ser humano pode ser ao acordar, o suposto padeiro respondeu não saber. Questionado sobre como, numa estância reconhecidamente turística e dada aos esportes, não havia uma infraestrutura de atendimento condizente, o interlocutor remeteu o problema à prefeitura. Ele não se julgava um empresário que tinha nos turistas seus principais clientes, portanto, o maior interessado.

Os teóricos ou o desconhecem em suas premissas ou o têm como dado imutável. Posições tão opostas não se preocupam com o principal que é montar um modelo em que a comunhão de interesses entre o público e o privado seja a variável dependente. Este é exatamente o escopo deste trabalho. A intenção aqui é justamente criar um modelo capaz de minimizar o antagonismo entre o Estado e o indivíduo.

Referências:

CANIATO, Angela Maria Pires; DO NASCIMENTO, Merly Luane Vargas. A vigilância na contemporaneidade: seus significados e implicações na subjetividade/Vigilance in contemporary society: its meaning and implication on subjectivity. Psicologia em Revista, v. 13, n. 1, p. 41-68, 2007.

CATHARINO, Alex. Menos Marx, Mais Mises. MISES: Interdisciplinary Journal of Philosophy, Law and Economics, v. 4, n. 1, p. 5-16, 2016.

CORRÊA, Murilo Duarte Costa. Os umbrais do humano: o homem como dispositivo biopolítico e o animal contemporâneo. Prisma Jurídico, v. 9, n. 2, p. 307-326, 2010.

ESTENSSORO, Luis Enrique Rambalducci. Capitalismo, desigualdade e pobreza na América Latina. 2003. Tese de Doutorado.

DAL PAI, Raphael Almeida. A teoria “anarco” capitalista pelos artigos pulicados no site do Instituto Ludwig von Mises Brasil (IMB) e a noção “libertária” de anarquismo. Temporalidades, v. 10, n. 2, p. 173-185, 2018.

DE MORAES, Roberto Camps. A segunda Guerra do Golfo e as relações econômicas internacionais. Indicadores Econômicos FEE, v. 31, n. 1, p. 37-58, 2003.

DUAYER, Mário. Capital: More human than human (Blade Runner e a barbárie do capital). Revista Trabalho Necessário| ISSN: 1808-799X, v. 8, n. 11, 1999.,

FARES, Seme Taleb. Esperança e Medo: a Guerra Fria e as relações Brasil-Estados Unidos no Congresso Nacional (1961-1964). 2014.

GUTERMAN, Marcos. A moral nazista: uma análise do processo que transformou crime em virtude na Alemanha de Hitler. 2013. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo.

HAAS, Ingrid Freire. Os Direitos Humanos e os desafios da Diversidade Cultural: a (in) tolerância diante do diferente. Revista Direitos Culturais, v. 12, n. 26, p. 15-30, 2017.

MOISÉS, José Álvaro. Cultura política, instituições e democracia: lições da experiência brasileira. Revista brasileira de ciências sociais, v. 23, n. 66, p. 11-43, 2008.

NETTO, José Paulo. Pequena história da ditadura brasileira (1964-1985). Cortez Editora, 2016.

RODEGHERO, Carla Simone. O comunismo e outros perigos: memórias sobre o medo entre católicos. História oral: revista da Associação Brasileira de História Oral. Recife, PE. Vol. 10, n. 2 (jul./dez. 2007), p. 91-112, 2007.

ROTHBARD, Murray N. Hayek eo Prêmio Nobel. MISES: Interdisciplinary Journal of Philosophy, Law and Economics, v. 2, n. 2, p. 605-609, 2014, disponível em: https://www.revistamises.org.br/misesjournal/article/view/693, consultado em 13/01/2020

  1. Boeing 747-200 derrubado por dois caças soviéticos em 1º de setembro de 1983, conhecido como voo K007, em que morreram duzentos e quarenta e seis passageiro e treze tripulantes.
  2. Historiador nascido em Alexandria em 1917 e morto em Londres em 2013, naturalizado britânico que escreveu a tetralogia: “A Era das revoluções”, “A Era do Capital”, “A Era dos Impérios” e “A Era dos Extremos”.
  3. Sobre essa declaração, vide https://www.oantagonista.com/brasil/bolsonaro-sonego-tudo-que-possivel/.
  4. Sobre a experiência denominada Colônia Cecília, vide https://www.infoescola.com/curiosidades/colonia-cecilia/.