História Econômica do Brasil

A Lei 6404 e a Institucionalização da Dependência

O século XX mostrou uma tendência mundial de o capital tornar-se financeiro. Isso mudou a estrutura dos stakeholders[1] das empresas porque não são pessoas que nelas investem, porém, fundos cujos gestores não têm necessariamente os mesmos interesses dos gestores profissionais das empresas (BIANCHI E NASCIMENTO, 2005). Enquanto os primeiros querem otimizar a relação risco-retorno, os segundos pretendem maximizar o crescimento, pois é isso que lhes dá notoriedade no mercado de trabalho. O Brasil foi atingido por esse fenômeno desde o fim da II Guerra e de forma mais acentuada a partir da crise do petróleo de 1973, tornando-se evidente após a estabilização da moeda nos anos 1990 (CASTELO BRANCO, 2010). Na tentativa de manter o fluxo de investimentos externos, base do desenvolvimentismo que imperava por ocasião dos governos militares, promulgou-se a lei 6.404/1976, que alinhava nossos procedimentos empresariais e de controle aos vigentes na Europa e nos Estados Unidos. As empresas multinacionais aproveitaram a instituição do mecanismo de transformação de sociedade por ações para limitada promovida pela nova lei e, consistentemente, fecharam seu capital, tornando-se sociedades por quotas de responsabilidade limitada. É que nenhuma multinacional de peso, exceto o banco Santander abriu seu capital no Brasil na vigência dessa lei, mesmo que haja uma certa discussão a respeito de uma empresa ser ou não ser de fato estrangeira consoante a real identidade de seus controladores (ALDRIGHI E MAZZER NETO, 2007). Desde então, sempre que uma empresa é vendida para outra internacional, o primeiro passo é fechar seu capital aqui e incorporar os ativos às ações negociadas em bolsas em outro país, como ocorreu com a TAM ao ser adquirida pela LAN em 2012 (GAZZONI, 2012). Tornou-se limitada a TAM e as ações oriundas da fusão passaram a ser comerciadas na bolsa de Santiago. Isso trouxe uma falta absoluta de transparência numa parcela significativa da nossa economia. É que as empresas de capital fechado e as limitadas não são obrigadas a publicar balanços, mesmo que a lei 11.638/2007, no seu artigo 7º, reze que todas as empresas com faturamento maior que R$290.000.000,00 divulguem seus resultados. Por causa disso, não se tem sequer uma ideia precisa acerca do faturamento de setores como o da indústria automobilística ou farmacêutica prejudicando todas as métricas de desempenho baseadas na comparação com os índices das bolsas de valores. Batista (2018, p. 78 – 79) relata que, desde a emissão do projeto da lei, este tinha sido o ponto de maior discussão e atuação de lobby, visto que as multinacionais, desde a edição da lei 6.404/1976 têm as limitadas como tipo preferido de sociedade. O texto do autor mostra que, mais que recalcitrante, as empresas estrangeiras são avessas à publicação de seus dados econômicos como já ocorre na União Europeia, conforme relato detalhado de Batista (2018, p. 40 – 61).

Tudo indica que essa atitude visa favorecer o “conter trade”, ou seja, as transações comerciais que, somente no papel, são feitas entre as matrizes e os fornecedores internacionais, sendo a entrega feita diretamente no destino. O triângulo se fecha com a exportação da matriz para a filial por um valor provavelmente superfaturado (Patel e Valle 2013, p. 9) que eleva a conta de exportação no país de origem, portanto, tornando mais favoráveis seus resultados aos olhos de um mercado que não é o em que se deram produção e consumo. Esses resultados “ampliados” favorecem o aumento dos dividendos pagos aos acionistas no país de origem, bem como a diminuição do deságio dos papéis emitidos pela matriz no mercado de dívida. Além disso, o fato de não se publicarem balanços permite que, quando nossa moeda se desestabilize, a matriz deixe os investimentos diretos e passe a conceder empréstimos à filial, alavancando sua operação com as contas passando ao largo da consciência nacional, expediente de que a General Motors abusou durante os anos 1980. Nesse caso, somam-se os juros pagos à matriz com as importações superfaturadas e ter-se-ão preços internos abusivos. Isso, embora sem estudo acadêmico estruturado, comprova-se pelo número de denúncias acerca de o preço líquido cobrado aqui ser sempre maior que o do mesmo veículo em seu país de origem. Mesmo assim, como tanto os juros passivos como as importações superfaturadas entram a débito nas contas de resultado, o pagamento de impostos diretos, especialmente o de renda e a contribuição sobre o lucro líquido (CLL) tendem a ser subavaliados, podendo prejudicar a arrecadação.

Acrescente-se aos argumentos acima a facilidade com que as empresas estrangeiras encerram suas atividades no Brasil, quando não as transferem para outro país e se transformam em importadoras. É que, se tivessem capital aberto, o processo de liquidação teria de seguir as regras da CVM e parte do capital, que se teria captado internamente, precisaria ser ressarcido ao investidor local. Essa facilidade parece deixar o poder público refém pela a ameaça de a empresa retirar-se provocando desemprego, o que redunda em benefícios e renúncia fiscal que não são repassados ao consumidor.

Como isso acontece ao longo de toda a cadeia produtiva, mesmo as empresas nacionais estão sujeitas a essa distorção, tendo seus custos ampliados no que se chama de custo-Brasil, fenômeno muitas vezes atribuído injustamente ao nosso sistema tributário.

Todo esse mecanismo causa incômodo a juristas coo Modesto Carvalhosa apud Batista (2018, p. 77), sem contar a própria CVM, coautora da lei !!.638/2007 como meio de correção da opacidade de informações econômico-financeiras amparada pela lei 6.404/1976, causa esta abraçada pela resolução 2/2015 da Junta comercial de São Paulo (Jucesp). Ela impõe, com base na Lei de Padronização das Demonstrações contábeis, que todas as sociedades empresárias de grande porte publiquem e depositem suas informações financeiras como se fossem sociedades anônimas de capital aberto.

Seria essa prática realmente capaz de fragilizar nosso mercado de capitais? Como o fato de muitas empresas abrirem seu capital, crescerem a partir da captação, tornarem-se multinacionais e, em seguida, saírem do país, transformando-se em sociedades empresárias de capital fechado afeta o estoque brasileiro de capital/

A promulgação de uma nova lei das S. A., que substitua a 6404/1976, passando pela 10.303/2001 e alterando a 10.406, conhecida como Código Civil Brasileiro, obrigando as empresas estrangeiras que negociem ações nas bolsas de seus países de origem a abrir seu capital aqui ajudaria a:

a) induzir as empresas a padronizarem suas demonstrações contábeis de acordo com a lei 11.638/2007; a partir da padronização das demonstrações e publicação de balanços, tornar-se-iam os dados setoriais muito mais transparentes orientando políticas de crédito e incentivo mais efetivas (Antunes e Mendonça, 2008); o IPO[2] delas atrairia capital nacional e estrangeiro para nosso mercado de valores fortalecendo-o e aumentando número de produtos financeiros à disposição dos investidores; deixaria o investimento mais estável, posto que as empresas não poderiam simplesmente fechar as portas assim que seus interesses se voltassem para outras regiões; induziria o reinvestimento no mercado interno, evitando que parte do resultado obtido internamente financie investimentos e operações deficitárias de empresas do mesmo grupo no resto do mundo sem que nossos capitalistas se beneficiem da transação.

A participação do capital estrangeiro na economia Brasileira é muito significativa, mesmo que, pelos vieses mencionados acima seja difícil uma rápida quantificação. Em alguns setores como o automotivo chega a 70% já considerando o mercado de autopeças. Também, a priori, não se consegue estimar o montante de capital que o IPO compulsório traria para nosso mercado de valores porque o capital registrado das multinacionais em operação no país como sociedades limitadas pode estar subavaliado. É, no entanto, de se esperar que seja significativo a ponto de as multinacionais fazerem constantes ameaças para obtenção de benesses em tempos de crise (Terra Network 2014). A quantificação por si só já justifica a preocupação, o que se evidencia pela expectativa da sugestão de medidas que podem ajudar a pôr o Brasil no trilho institucional do desenvolvimento.

Referências

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  1. Segundo a novaStakeholders, segundo a Nova teoria Institucional, corresponde ao conjunto de interessados na sobrevivência da empresa, dividindo-se entre empregados, fornecedores, clientes, investidores e Estado.
  2. IPO, termo em Inglês para primeira oferta pública de ações em uma bolsa de valores que pode estar dentro ou fora do país.