Este trabalho não pretende estudar a Cepal em sua evolução histórica e conflituosa em face das demais vertentes do pensamento econômico-sociológico da América Latina, limitando-se às ideias preponderantes no seu período de maior influência sobre a formulação das políticas desenvolvimentistas dos países latino-americanos a partir de 1949, fixando Brasil e Argentina como recorte geográfico para os exemplos e 1964 como fim do recorte temporal.
Não é possível entender o pensamento cepalino sem explorar o contexto em que a Cepal foi criada e como seus dirigentes foram escolhidos. Órgão criado pelas Nações Unidas, apenas um ano após sua fundação, quando seu presidente era o gaúcho Oswaldo Aranha, e haviam passado somente dois anos da morte de Keynes, foi fruto do desenvolvimentismo que permeou os acordos do pós-guerra. Embora o mundo já vivesse a Guerra Fria, ainda alardeava-se a máxima de que a II guerra seria a guerra que acabaria com todas as guerras, não sendo de espantar que se pretendesse fomentar, mesmo que apenas formalmente, o desenvolvimento pelo resto do mundo nos moldes dos vencedores.
Raúl Prebisch, economista argentino com carreira meteórica, já tinha trabalhado na Liga das Nações e costurado os primeiros acordos bilaterais de comércio de que se tem notícia, além de ter projetado o banco central argentino, sendo seu primeiro secretário geral. Era um fervoroso keynesiano, tanto que seu primeiro livro foi “Introducción a Keynes” de 1947, quase um epitáfio ao mais proeminente economista do século. Foi ainda como consultor da Cepal que apresentou, em Havana (1949), o modelo de desenvolvimento por substituição de importações.
Pelo lado oposto, o dos países desenvolvidos, Especialmente os Estados Unidos, que, depois do acordo de Bretton Woods, gozava dos benefícios do câmbio a taxas fixas no restante do mundo, vendo drenarem-se para si as reservas, reais ou fictícias, amealhadas durante a II Guerra pelos países subdesenvolvidos, exportava de tudo, consequentemente, deteriorando as relações de troca dos países predominantemente agrícolas ou fornecedores de produtos debaixo valor agregado.
Ao mesmo tempo, o Brasil ainda contava com escolas de Economia que não passavam de uma expansão de escolas de comércio, como a Faculdade de Economia São Luís, a Fundação Alvares Penteado, destacando-se a Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), fundada por Roberto Simonsen. Por causa disso, os economistas mais proeminentes do Brasil tinham formação em Ciências Sociais ou direito, como ocorreu com Celso Furtado, que obteve seu doutorado em Economia em Paris. Conquanto já houvesse uma preocupação com absorção de políticas cientificamente fundamentadas na administração pública, faltava, ao contrário do que ocorria na Argentina, a formação local de economistas capazes de criar ideias autóctones que descrevessem o subdesenvolvimento.
Na Cepal, juntamente com Prebisch, desenvolveu-se o estruturalismo como linha de pesquisa. Nela, a situação econômica me que se encontraria um país não industrializado não era um passo necessário ao desenvolvimento. Ao contrário, tratava-se de uma condição estrutural. Numa palestra proferida na Columbia University, presenciada por este autor, furtado comparou o subdesenvolvimento a uma criança que, por falta de cálcio, adquire raquitismo. Mesmo que, na idade adulta, enriqueça e tenha suas necessidades nutricionais supridas, seu esqueleto continuará deficiente como sempre foi.
Ao estruturalismo – talvez baseando-se nele – explicitou-se a ideia de centro x periferia. Essa noção tem um pé na ideia de economia-mundo geralmente atribuída a Braudel com base no capítulo intitulado “Caminhos e rotas” de “O Mediterrâneo de Felipe II”. A ideia básica é que os padrões de produção e consumo partissem, como aconteceu na colonização e europeização das Américas, do conquistador e fossem absorvidos pelos conquistado. Muitas vezes, eles se tornavam aptos a reproduzir bens e serviços mas não criá-los, numa eterna dependência dos países centrais. Numa outra forma de descrever, a economia parte do centro pelos portos, navega até as colônias, dá lugar às matérias-primas de exportação e continua país a dentro via ferrovias, rodovias e, finalmente, em lombo de mulas.
Para os estruturalistas, a relação centro-periferia fatalmente redundaria em deterioração das relações de troca devido ao maior valor agregado dos produtos industrializados, mesmo que os países periféricos recebessem investimento em indústria que o centro já não queria, ou por ser intensiva em mão de obra, ou por depender de matérias-primas só existentes na economia exportadora. Nas revisões feitas a partir dos anos 1970, introduziu-se a poluição como motivador da transmissão de atividades do centro para periferia. Isso aparece em Immiserizing Growth de Brecher, Richard, and Carlos Diaz-Alejandro. Assim, para os teóricos cepalinos, para quebrar essa dependência, seria preciso promover um programa de substituição de importações acelerado e capaz de transferir tecnologia. Isso se refletiu nos grupos de estudos como o Geia (Grupo de estudos para a Indústria Automobilística) do governo de Kubitschek, de que furtado fez parte.
Em Teoria e Política do Desenvolvimento Econômico, Celso Furtado explica que algumas colônias tornaram-se países centrais porque, ao contrário das detentoras de economias de exportação, puderam amealhar capital suficiente para sair das estruturas pré-capitalistas, fazendo parte da revolução industrial. No caso dos Estados Unidos, as colônias do norte, que produziam basicamente os mesmos bens que a Europa, tiveram desenvolvimento consistente, enquanto as do sul, que viviam em regime de plantation, mantiveram-se dependentes. No caso da Austrália, apesar de a exportação de bens primários como a lã e o açúcar fosse bastante intensa, era longe demais, o que encarecia sobremaneira as importações, induzindo a produção local a partir de capital próprio.
Durante os anos de desenvolvimentismo cepalino, empresas nacionais e estrangeiras conviveram pacificamente, até complementarmente. As nacionais Delta S/A, Invictus Ltda e outras competiam com Telefunken e Phillips na fabricação de televisores e rádios, enquanto Vemag, mesmo com tecnologia NSU, convivia com Volkswagen e a junção Willys-Renault. No caso dos automóveis, modelos abandonados no país de origem, ou pertencentes a empresas em processo falimentar como a Willys no Brasil e Argentina, Sinca no Brasil e Kayser na Argentina. Parte da aderência das políticas cepalinas na América Latina, especialmente no Brasil e Argentina, deveu-se à compreensão dos países centrais de que a capacidade de importar estava minguando e que a remessa da parte obsoleta de seu parque industrial permitira ter bons lucros a partir do baixo custo fixo, bem como dos incentivos fiscais e outros não fiscais como oferta de terrenos e infraestrutura urbana.
Críticas contundentes geraram desdobramentos como o destaque do modelo da dependência e capitalismo tardio com a contribuição da Escola de Campinas, de que participou, entre outros, Paul Singer. Dois pontos foram os mais atacados, o tratamento impessoal, até mecanicista do empresariado, como se sua mentalidade não tivesse parcela de responsabilidade na desigualdade regional, e a premissa de que não seria possível gerar alto valor agregado no setor primário da economia. Os conflitos e antagonismo intelectual entre os membros da Cepal, os membros do ISEB e os da Escola de Sociologia de São Paulo, que duram até hoje, estão muito bem descritos por Bresser Pereira no seu artigo “DO ISEB E DA CEPAL À TEORIA DA DEPENDÊNCIA” de 2005. A sucessão dos momentos históricos moldou as revisões no pensamento cepalino culminando com o regionalismo aberto, que devem ser alvo de outro trabalho. Importante aqui foi entender como a América Latina, sob a ótica cepalina, relacionava-se com o resto do mundo, mormente, com o formado pelas economias centrais num momento histórico que começou no pós-guerra e antecedeu os golpes militares que puseram a nu o comportamento do empresariado em apoio às ditaduras, forçando a Cepal a fazer sucessivas revisões na busca de ampliar a validade de seu pensamento.