História Econômica do Brasil

O longo percurso do trabalho escravo ao assalariado no Brasil

Somente a discussão acerca de trabalho assalariado daria um tratado porque autores reconhecidos como Gorender, Furtado e Ferline jamais entraram num acordo acerca do assunto. É que a noção de dinheiro-mercadoria-dinheiro de Marx não se aplica a uma economia com as particularidades da do Brasil colonial e imperial. Trabalho livre e escravo coexistiram e, muitas vezes, trabalhadores livres não recebiam salário, como agregados ou meeiros; enquanto cativos poderiam ficar com parte da remuneração que auferiam para seus senhores e depois comprar sua liberdade. Embora escravos tivessem sido treinados como artesãos, artífices livres empregaram outros trabalhadores em igual condição, remunerando-os em espécie e isso foi exaustivamente pesquisado por Angélica Vasconcelos em sua tese de doutorado acerca da Cia Comercial de Pernambuco. Para efeito deste trabalho, considere-se a predominância do pagamento de salários sobre as demais formas de remuneração. Isso exclui, como se verá adiante, o regime de colonato, em que o colono planta para sua subsistência e algum comércio e cuida do patrimônio do fazendeiro, repartindo os rendimentos. Também pela exiguidade do tempo e a vastidão territorial e diversidade histórica do brasil, o que aqui se verá é o retrato resumido dos mecanismos que nortearam um processo que ainda não terminou.

Analisar-se-ão quatro dimensões em ordem crescente de importância: a legislação, a urbanização, a economia do açúcar no Nordeste e a do café no Sudeste. É que o tempo não é suficiente para que se estenda a análise para todo o território nacional que teve sempre suas particularidades, como estudado por FHC acerca da salga da carne no Rio Grande do sul.

A legislação pertinente ao escravismo parece ter sido a de menor importância porque as leis, quando não foram cumpridas, contavam com brechas que quase as tornavam inócuas. A do Ventre Livre dava liberdade aos nascituros mas garantia a tutela aos seus senhores até os vinte e um anos, quando as escravas já haviam parido filhos que perpetuariam a escravidão. Ao mesmo tempo, a Lei dos sexagenários, além de descartar os poucos que chegavam a essa idade, ainda requeriam três anos de trabalho gratuito como indenização. Por certo que a única que teve real efeito foi a que proibia o tráfico, porém, por conta de os navios ingleses estarem autorizados a afundar os negreiros. O fato é que, desde a Independência, intensificando-se após 1850, os preços explodiram por conta da falta de oferta de novos braços. Ao contrário dos Estados Unidos, onde se praticava uma política de reprodução interna dos escravos, o Brasil optou por manter a importação, preferencialmente, homens jovens. Por causa disso, a quantidade de escravas negras era insuficiente para que se implantasse um sistema de reprodução para venda depois de proibição do tráfico, restringindo ainda mais a oferta.

Uma lei, apesar de pouco correlacionada com o assunto, foi de grande importância para o fim da escravidão. Trata-se da lei imperial 601 de 1850, também conhecida como Lei de Terras. Até 1822, vigoravam as Ordenações Filipinas. Com a independência, houve uma desorganização do sistema fundiário brasileiro, o que se agravou com a proibição da concessão de sesmarias por influência de José Bonifácio. Restava o padroado, também conhecido como Registro paroquial mas a terra, até pela elasticidade da oferta, continuava sem u sistema de propriedade que redundasse em preços palpáveis. Justamente por isso a riqueza era medida em número de escravos, como até hoje os historiógrafos fazem ao referirem-se ao período colonial. Com a Lei de Terras, devolvendo-se todas elas ao imperador que as venderia em hasta pública, a posse deu lugar à propriedade e as terras passaram a ser o principal ativo garantidor das transações de crédito, tanto que a última vez em que se aceitou a alienação de seres humanos ocorreu dois anos antes da abolição. Isso significava que, mesmo que o preço dos escravos estivessem em alta, o interesse por eles como alienação fiduciária era declinante, criando um paradoxo para os investidores que não queriam ver seu capital imobilizado em um ativo que pouco lhe traria para assunção ao crédito.

No início do século XIX, já havia cidades com mais de trinta mil habitantes no Brasil, por exemplo, Recife, Salvador e Rio de Janeiro. Essa urbanização intensificou a figura do escravo de ganho. O aluguel de escravos sempre existiu por conta da sazonalidade da lavoura mas a migração para a economia urbana fez com que tivesse importância crescente, seja pela venda de artesanato, seja pela prestação de serviços para pessoas que não pudessem adquirir seus próprios. Aproveitava-se, desta forma, a pecha, que persiste até nossos dias, de que a delegação do trabalho braçal atribuísse posição mais privilegiada aos contratantes. Esses escravos de ganho passaram a ter algum reconhecimento de cidadania, mesmo que não pleno, a ponto de abrirem-se contas em seu nome na então Caixa Econômica de Penhor e Poupança para que os fundos amealhados comprassem a própria liberdade, quando não a alforria de seus pares. Também foi a urbanização que ensejou o nascimento de uma categoria de mulatos abolicionistas que por terem pais livres, nunca foram escravos, alguns atingindo notoriedade, como Tobias Barreto, José do Patrocínio e, provavelmente, machado de Assis. Como descreve Aloísio de Azevedo em “Cortiço”, negros livres e escravos remunerados, mesmo que indiretamente, criaram um exército que, com o fim da escravidão, poder-se-ia transformar em classe proletária.

Desde os últimos anos do século XVIII, a economia açucareira estava em declínio no Nordeste porque os métodos de filtragem e centrifugação que conferiam um tom alvo ao produto não foram aplicados pelos senhores de engenho locais. O açúcar amascavado brasileiro não tinha o mesmo valor internacional que o de beterraba introduzido em larga escala durante as Guerras Napoleônicas, nem do trazido das colônias holandesas do oriente. Engenhos estavam-se tornando de fogo morto e a mão de obra escrava ficando ociosa. A solução era vender a escravaria para a florescente economia do café no sudeste. Isso foi possível entre 1850 e 1870, quando a “mercadoria” começou a rarear por lá também. Ao mesmo tempo, em 1874, com a implantação dos engenhos centrais, nos moldes cubanos, que, por lei, deveria basear-se em trabalho livre, o mercado para a mão de obra escrava ficou restrita à lavoura, enquanto, na esteira, criava-se um contingente de ex-escravos que poderiam formar uma classe proletária regional.

O café tomou o espaço do açúcar como bem de exportação, como verificou Maria Thereza Petrone, mas não perdeu sua função no sudeste, onde, como afirmam José Evando e Roberta Barros Meira, passou a destinar-se ao mercado interno que, por sua vez, vinha crescendo por conta da própria substituição da mão de obra escrava pelos imigrantes livres. Conforme sobejamente estudado na história da cafeicultura na Esalq (Escola Superior de Agricultura Luís de Queiroz da USP), com mão de obra escrava, a produtividade era de 4 sc/ha, com uma margem de 50% para o senhor da terra. Os mesmos estudos dão conta que, usando-se os colonos europeus, atingiam-se as 11 sc/ha, redundando numa renda de 5,5 sc/ha para o senhor da terra. Essa consciência não precedeu a imigração subsidiada, foi observada mais tarde. O interesse inicial era realmente suprir a necessidade de braços para a lavoura o que, em muitos casos, motivou o tratamento do trabalhador braçal europeu como se fosse escravo. Isso causou revoltas, até proibição, nos países de origem, da vinda de novos imigrantes. O colonato foi uma evolução no relacionamento com os imigrantes e houve um sucesso significativo na província de São Paulo, mesmo que efêmero. Como o café era plantado em covas de 4m x 4m, havia espaço para o colono, que recebia um número fixo de pés para cuidar, plantar grãos como milho e feijão para subsistência e até vender, permitindo-lhe amealhar capital independentemente do relacionamento com seu senhor. Em São Paulo, onde a marcha para o Oeste Paulista oferecia cafés novos e mais produtivos, ao contrário de Minas, Vale do Paraíba e rio de Janeiro, onde os cafezais já estavam cansados, o colonato permitiu que os proprietários de terras passassem a residir nas cidades, onde começaram a dedicar-se a outros negócios que demandavam mão de obra mais especializada, como foi o caso da família Prado. Ao mesmo tempo, o sucesso do colonato decretou seu declínio porque, na ânsia de aumentar a produtividade, adotou-se o plantio em covas alternada entre com dois ou com um pé, aumentando em 50% seu número em relação à área plantada. Além de reduzir horizontalmente o espaço que o colono poderia aproveitar para si mesmo, o novo espaçamento inviabilizava o plantio nas entrelinhas, fazendo com que ele abandonasse a terra e viesse para as cidades aumentando a oferta de mão de obra proletária. Outros imigrantes, que conseguiram amealhar fundos suficientes, partiram para a compra de lotes para si mesmo, aproveitando que os antigos senhores já se estavam voltando para a especulação imobiliária como ocorreu com a CAIC (Cia Agrícola de Imigração e Colonização, mais tarde, Cia Agrícola Imobiliária de Colonizadora). Também eles empregaram mão de obra assalariada.

O declínio da cafeicultura fluminense aliada a uma florescente indústria têxtil fomentada no II Império, absorveu o excedente de ão de obra escrava no rio de Janeiro, que já tinha tradição da mistura entre trabalhadores brancos pobres e negros libertos como proletários.

A legislação, a urbanização, a transformação da economia do açúcar e o capital oriundo da economia cafeeira contribuíra para o pontapé inicial na transformação da mão de obra escrava em proletária. Essa transformação continuou pelo século XX a dentro, sedimentando-se com a industrialização, mormente calcada em bens de consumo como sabão, têxteis, vestuário e alimentação. Tenha-se em mente que o que aqui se viu não passou de uma pintura pálida e restrita regionalmente de um processo que ainda não se findou.